Rock Urbano (texto de Cadão Volpato)

O sujeito barbudo acabara de chegar de Brasília. Tinha cara de professor, barba de professor, óculos de professor. Mas era muito jovem para ser um professor de verdade. Mais tarde, ele contaria que tinha dado aulas de inglês, lá na sua cidade. E, na língua de Shakespeare, recitaria versos de Sonho de uma Noite de Verão. Por enquanto, parado em frente à porta, mochila no chão, elétrico, parecia só um professor. Um professor jovem e aloprado.

Tais tipos não me eram estranhos. No ano anterior, eu ainda estava na Universidade de São Paulo, aparando o gramado na frente da Escola de Comunicações e Artes em animadas partidas de futebol. Havia passado o período de 1975 a 1983 flanando pela universidade, numa rotina de militância, vagabundagem e auto-instrução intelectual, sentimental e sexual. Sabia, portanto, farejar de longe um CDF. E um deles estava ali, bem na minha frente. Ele e sua mochila.

Era um cara feio. Com os cabelos e barba desgrenhados. Tinha o jeito de quem tinha tomado um choque. E parecia que daria choques também. Girava os braços enquanto falava. Soldava o final de uma frase ao começo da outra. Brasília, para nós, universitários de São Paulo, representava o pior do Brasil. O general Figueiredo montado em seu cavalo de estátua era bem Brasília. O presidente adorava o cheiro dos cavalos e usava óculos rayban, acessório indispensável entre ditadores militares cucarachos.

Os óculos do barbudo não eram Rayban. E ali estava ele, com os óculos e a mochila, entrando pela porta da frente da nossa casa. Nem nós, moradores do apartamento, usávamos aquela porta. Alex, Minhoca e eu costumávamos entrar pela cozinha, onde imperava uma enorme geladeira branca, paquidérmica, com marca de automóvel. A geladeira era só cenário, paisagem. Dentro dela, morava somente uma garrafa de vodka. Nunca soube se ela estava cheia, vazia ou pela metade. Era o nosso totem. A gente vinha pela cozinha, passava pela geladeira e nem olhava: não havia nada nela, a não ser a garrafa de vodka. E o cara de óculos, que logo se instalaria em nossa sala durante um mês, foi direto à geladeira. Abriu, a luz prateada iluminou seu corpo magro, e a garrafa translúcida também reluziu. Ele disse que parecia a geladeira de um filósofo escandinavo: o nada e a vodka.

Depois descobrimos que ele era dado a elocubrações filosóficas. E que suas letras também tinham esse corte, que foi se aprumando com o passar dos anos e da fama, e acabou transformando seus shows em portentosas missas de alguma nova religião urbana.

Não me lembro de tê-lo visto vestindo outra coisa que não fosse camiseta branca, jeans e sapato preto. Camisetas furadas e calças rasgadas: todo o figurino do rock estava lá, desde o primeiro dia, minuciosamente calculado. Ele tinha tudo para ser um astro do rock dos anos 80 — exceto, claro, a barba, os óculos de professor, a feiúra. Ele trouxe, então, os dois garotos consigo, e eles pareciam um par de James Deans.

Bote de lado a evidente genialidade do sujeito de barba. A banda que ele montou se equilibrava entre esses pólos opostos: o bonito e o feio, o rock e a poesia. Era uma química poderosa. Em Brasília, ele era o bardo que se apresentava nos botecos. Chegava com o violão a tiracolo e cantava aquelas baladas dylanianas, quilométricas, e as pessoas diziam que era meio chato. Junte, porém, Bob Dylan e dois James Deans, bata no liquidificador e sirva: a moça vai beber até morrer.

O rock brasileiro era então mais rústico, vivia no ostracismo. A mpb mandava. Ela era de uma platitude sem fim, uma dor de cotovelo sinistra e asfixiante. Parecia não haver um grito possível. Pois o rock gritou. Gritou em Brasília, com a Legião Urbana, o Capital Inicial, a Escola de Escândalos, a Plebe Rude. Gritou em São Paulo, com os Voluntários da Pátria, o Ira, o Smack, as Mercenárias. No Rio, deu uma de Stones com o Barão Vermelho e o Cazuza, e uma boa gargalhada com a Blitz. Confesso que o humor do Rio sempre me escapou. Certa vez, minha banda — que se chamava Fellini — foi tocar no Crepúsculo de Cubatão, uma espécie de Madame Satã carioca. O cantor Guilherme Isnard, que veio conosco no mesmo vôo e quis assistir, teve de voltar para casa e trocar as bermudas que usava por calças compridas. Era carnaval. Mas no Crepúsculo a noite era obrigatoriamente densa, dark, underground. Sem essa de homens de pernas de fora.

Em 1984, o underground paulistano foi ponto de passagem para as bandas que iriam estourar no ano seguinte, colocando o rock e a juventude no mapa do Brasil. Quem estava na cidade e tocava rock, quis ir embora no mesmo pacote. Ou no mesmo pau-de-sebo, aqueles sacos de gato das gravadoras, que reuniam os grupos em um só lp, para testá-los com o público.

Para Renato Russo, o barbudo elétrico diante da porta do meu apartamento, a espera durou um mês. Um mês de underground legítimo. Underground mesmo: eu, Alex e Minhoca morávamos no centro, no 18o andar de um prédio na rua Major Quedinho, à beira de um viaduto (num vale cheio de viadutos), sobre a avenida Nove de Julho. Dava para ir a pé até o Madame Satã, onde tudo acontecia. Nós íamos, altas horas, costurando as ruas desertas do Bexiga. Nossos afazeres de músicos consistiam em quatro coisas: batizar a banda com um nome que ninguém mais tivesse pensado (tanto que a nossa se chamava Fellini...); ensaiar sem fim; fazer a foto de divulgação a mais sorumbática o possível, de preto, com caras tristes; arrumar um show num buraco qualquer. Gravar um disco era um sonho bem menos tangível.

Thomas Pappon, que vive em Londres há uns dez anos, era o motor da Fellini. Ele era o cara que sonhava. Sem alguém que sonhe, que tenha paciência, que goste de ensaiar e de beber nos botecos enquanto imagina nomes, características e desfechos para o seu trabalho, você não é nada no rock’n’roll. Se não houver um, ao menos um talento de verdade na banda, você não vai sair da lavanderia onde ensaia. (Nós, ao menos, ensaiávamos numa lavanderia, a da casa de Ricardo Salvagni, o então baterista; à nossa maneira, acho que conseguimos sair de lá). A Legião Urbana tinha seu talento. Renato Russo anotava a futura trajetória da banda num caderno. Ele imaginava tudo o que iria acontecer.

A Legião era um trio poderoso. Não que eles tocassem bem. Eles soavam bem, o que é diferente. Russo — “sobrenome” que Renato Manfredini Jr. escolheu para si mesmo, em homenagem aos filósofos Bertrand Russel e Jean-Jacques Rousseau — dizia coisas bem mais tocantes do que nós conseguíamos dizer. Nós éramos apenas uns universitários trotskistas.

Na primeira vez que vi a Legião, o mesmo público de trinta pessoas de sempre, que seguia as bandas pela noite paulistana, ocupou parte das cadeiras do Centro Cultural da rua Vergueiro. Foi uma apresentação impressionante. Canções como “Será” e “Índios” ficaram tão batidas com o passar dos anos, que viraram clássicos. Mas ouvi-las pela primeira vez, cantadas pelo Renato, no seu timbre de voz quase único (Jerry Adriani veio antes), meio metálico, foi uma revelação. Uma epifania. A química do trio, aquela mistura de Bob Dylan com James Dean, era magnética.

Esqueci a Legião dos estádios. Esqueci a Legião que tinha um cantor que usava um ramalhete no bolso traseiro, como Morrissey, dos Smiths. O cantor messiânico que dava broncas na multidão. O rei dos acampamentos e dos adolescentes espinhudos do Brasil inteiro. A Legião que ficou na minha memória foi a daquela primeira noite, a do bardo de calças rasgadas.

No primeiro show da minha banda, o ex-Mutante Arnaldo Batista estava entre as trinta pessoas da platéia. Estava? Sempre acreditei que sim. Achava natural, não sei por quê. Ele ficou sentado sozinho numa mesa encostada à parede, tomando guaraná. Já era sobrevivente de uma tentativa de suicídio.

Naquela noite, a banda do Alex, conceitual, misteriosa e de nome sagaz, inspirado num filme de Godard (nº 2), iria se apresentar pela primeira vez. Minhoca, o guitarrista, desmaiou de tanto beber. Desabou e ficou prostrado no seu colchão do 18o andar.

Eu estava careta e inteiro. Diante da esfinge indecifrável de Arnaldo Batista e seu guaraná, estreei segurando firme, com as duas mãos, o pedestal do microfone. Olhava um ponto vazio no infinito. Emulava a voz desesperada e robótica, como que saída de uma lata, do líder do Joy Division, Ian Curtis. Ele havia se enforcado em casa aos 23 anos, quatro antes dos ensaios na lavanderia do Ricardo. No fim da noite, ouviram-se os grilos. Aliás, sempre se escutavam grilos no fim.

Foram meses e meses de ensaios na lavanderia. Aos sábados, pegava o ônibus debaixo dos viadutos e seguia para as ruas ricas e desertas do Morumbi, onde o pedestal do meu microfone era um cabo de vassoura. As fotos de divulgação dessa época nos mostram enfileirados, à maneira dos Doors: Thomas, Ricardo, Jair Marcos e eu. A guitarra do Jair era uma Giannini vagabunda, que está viva até hoje. Thomas dizia que ele era o Jackson Pollock da guitarra, salpicando no ar melodias tão estranhas e sutis que não se conseguia agarrá-las. Jair era da Mooca, como o Minhoca. Deve ser a água, ou os trilhos, do bairro: a Mooca nos deu pelos menos dois grandes guitarristas.

Tínhamos nossas diferenças em relação ao som que se fazia em Brasília e no Rio. De Brasília, eles chegavam bem-nascidos, com o charme dos roqueiros naturais. No Rio, eles tinham a praia e fumavam dentro dos ônibus, de sunga. Não tinha nada a ver com rock. Em São Paulo, éramos sérios como uma doença. Essas diferenças acabariam um pouco mais adiante, quando quase todo mundo foi para uma gravadora grande e o rock virou uma comunidade de respeito.

Minha banda permaneceu do lado de cá do sucesso. Gravamos quatro discos. Tocamos em Nova York, para trinta brasileiros perdidos. Emplacamos uma música no programa do lendário dj inglês John Peel. Recebemos várias cartas da Inglaterra por conta dessa audição (“Escrevam”, disse o dj nas ondas da bbc, “nem que seja para receber selos de um país exótico”). Viramos cult. Uma comunidade no Orkut ainda fica discutindo a nossa trajetória. Thomas Pappon a alimenta com sons feitos há vinte anos, gravados em cassete, que ele colocou à disposição para downloads na internet. Um garoto barbudo veio até mim um dia, na fila do cinema, e disse que havia casado por minha causa.

Renato e eu só nos falamos mais uma vez. Foi pelo telefone, em 1988. Uma conversa protocolar. Depois, ele deu uma entrevista falando bem das minhas letras. Nos anos 80, ninguém falava bem de ninguém. Só fui encontrar esse elogio muitos anos depois, com a ajuda do Google. Renato era um cara legal.

Do nosso exílio do sucesso, vimos os anos passarem. Vimos Renato cantar nos estádios, isolar-se no terror da doença e desaparecer. Vimos novas cenas musicais sem graça. Thomas Pappon partiu para o seu exílio voluntário. Na Europa, gravou um maravilhoso disco independente, com a banda de um homem só, The Gilbertos.

Antes de acabarmos, em 1990, fizemos várias fusões de música brasileira com rock. Numa dessas recaídas, que só os velhos roqueiros têm, montei, em 1991, uma banda com o que havia sobrado da outra. Gravamos um treco. Esse negócio foi parar numa fita cassete. Essa fita cassete viajou na mala da cantora que nos acompanhava na época, Stela Campos, que tinha ido morar no Recife.

Certa noite, em 1993, eu estava vadiando pelos corredores da tv Cultura, onde apresentava o programa Metró¬polis, quando ouvi o som de tambores saindo de um dos estúdios. Achei que fosse o Olodum. Ao entrar, dei de cara com um bando de rapazes de chapéu de palha, batendo tambores, acompanhados por uma guitarra. Não era o Olodum.

Ao sair, notei que estava sendo seguido. Eram os rapazes de chapéu de palha. Era o pessoal do Mangue Beat, na sua primeira viagem a São Paulo. Nas praias do Recife, eles costumavam ouvir gravações dos nossos discos. Aquela fita que Stela havia levado para lá fora passada de ouvido em ouvido. Eles conheciam minhas letras de cor. Foi assim que conheci Chico Science.

(Texto de Cadão Volpato, extraído da Revista Piauí)

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Um comentário:

Anônimo disse...

Primoroso! Tocante! Fodaço! Baita texto! Legião, Chico Science, Fellini... O que se pode querer mais? Grande transcrição! Valeu!