Harry Reconstruído
Eis que, do meio da louvação infantilizada até ao rebotalho dos anos 80, ressurge uma banda pouco conhecida mas relevante. A Fiber Records está botando na praça uma caixa dedicada à obra (quase) completa do grupo santista Harry, que vivia e agia, e é fácil sacar isso hoje, uma ou duas décadas à frente da sua década. Sob o nome “Boxing Harry – Taxidermy”, vêm três CDs, que compreendem o EP “Caos” e os LPs “Fairy tales” e “Vessels’ town”, além de 27 faixas bônus. Tudo devidamente remasterizado e na arte original, além de libreto com a história da banda e as músicas comentadas uma a uma.
Em vez de investir nas guitarras, marca do punk e da new wave que o informou, o Harry logo abraçou os teclados e os sintetizadores, inspirado por Kraftwerk, Ultravox, Sisters of Mercy. Dizer que o seu som lembra o Nine Inch Nails estabelece, de cara, um paradoxo temporal. O verbo lembrar sugere posterioridade e influência. Contudo, “Caos” é de 1987 enquanto “Pretty hate machine”, o primeiro do NIN, é de 1989. Trata-se de um daqueles casos em que mais ou menos os mesmos inputs resultam mais ou menos nos mesmos outputs mais ou menos ao mesmo tempo, porém em lugares diferentes.
A primeira formação do Harry – originalmente Harry & The Addicts – a chegar ao disco compreendia Hansenharryebm (voz em inglês e guitarras), Denise Tesluki (voz em português), Richard Kraus Johnsson (baixo) e César Di Giacomo (bateria). Produzido por Roberto Verta, o EP “Caos” saiu pelo selo Wop Bop, de São Paulo, para pequena circulação e grande espanto. Suas quatro únicas faixas, sendo uma delas a demo da faixa-título, não se pareciam com nada feito no Brasil na ocasião (e, na verdade, nem no Brasil de hoje). Eram pesadamente eletrônicas, sombrias, marciais, apocalípticas. Como as faixas bônus das década de 90 e 00 que lhe fazem companhia no disquinho da caixa.
Pouco depois do lançamento do EP, Denise deixou a banda carregando as letras em português e Verta tornou-se membro oficial, com seus teclados, engenhocas e guitarras. Foram estes quatro que, em 1988, gravaram o primeiro álbum pela mesma Wop Bop. Se, até pelas dimensões, “Caos” era um rascunho, “Fairy tales” era o quadro completo, uma obra-prima. “Amanhã eu espero que os céus estejam cinza”, rezava, em inglês, “Sky will be grey”, definida, no libreto, como “uma balada gótica”. Sua colocação estratégica, como primeira faixa do lado A, funcionava como uma chave para o LP todo: clave sem sol.
Passados 17 ou 16 anos da primeira (chapante) audição de “Fairy tales”, num vinil emprestado pelo DJ José Roberto Mahr, o disco de capa enfumaçada ainda me faz pensar em Cubatão. Um pouco pela cidade da Baixada Santista que era a capital nacional da poluição nos anos 80. Um pouco pelo Crepúsculo de Cubatão, a mitológica casa de Ronald Biggs em Copacabana, que abrigava, numa boa, os tipos mais estranhos e sombrios da noite carioca. Por associação de idéias e sentidos, portanto, “Fairy tales” mantém, para mim, o sabor do drinque Chuva Ácida. Não se trata, em absoluto, de saudosismo, mas de memória.
“Fairy tales” também, à sua maneira, tratava de memórias, apesar da roupagem futurista-industrialista. “You have gone wrong” misturava uma letra singela (“Você se enganou/ A sepultura é o caminho/ Ninguém nunca liga/ Se eu morrer hoje à noite”) com gravações de discursos de Adolf Hitler e de Getúlio Vargas. E a épica “Soldiers”, possivelmente a melhor faixa de toda a carreira do Harry, usa gaitas-de-foles e coro soldadesco para falar de traumas de guerra – que, segundo o seu autor, Johnsson, estão em seu DNA. “Eu escuto soldados, eu escuto eles vindo/ Tenho certeza que a noite vai ser longa”, ameaça a letra.
Entre as seis faixas bônus da presente versão de “Fairy tales”, há uma excelente versão de 1988 para “Soldiers”, sem guitarras, mas cheia de gaitas-de-foles. Cabe notar que a primeira versão do álbum em CD, lançada pelo RDS em 2000, também incluía três faixas bônus, sacadas da versão cassete da Wop Bop. Apenas uma (“Sexorama”) se repete em “Boxing Harry” – daí aquele quase entre parênteses do primeiro parágrafo. Finaliza o “Fairy tales” da caixa o remix de Ticiano Paludo para “You have gone wrong”, ganhador do Remixing Harry, concurso do site FiberOnline, do mesmo Enéas Neto que, pelo Cri du Chat Disques, lançou uma coletânea do Harry em 1994, “Chemical archives”.
“Boxing Harry” encerra-se, claro, com o terceiro e menos conhecido disco de linha da banda: “Vessels’ town”, de 1989, lançado originalmente pelo selo Stiletto e até agora inédito em CD. Foi gravado em condições adversas – Di Giacomo deixara o Harry pouco antes, Johnsson arrumara um emprego numa usina de borracha – e teve pouca divulgação. Pena. Traz ótimas canções, como “Morbid”, cuja letra modificada por Verta forneceu uma espécie de lema tardio para o grupo: “Mórbido, mas não triste”. A versão da caixa traz, entre os bônus, duas demos só na guitarra (“Emotional spasms”) ou no violão (“Stories”) que se sustentam de pé sozinhas, escancarando a beleza das melodias de Johnsson.
Como prova final de que o Harry não morreu, Hansenharryebm, Johnsson, Di Giacomo e Verta voltaram aos shows em novembro agora. Como a fusão entre rock e eletrônica hoje campeia no mundo, seu som finalmente acerta os ponteiros com o seu tempo.
(Arthur Dapieve)
Remixing Harry
Lucid Dream (Remix)
You Have Gone Wrong (Brit-PopCorn-Mix)
Harrynet.com.br
Arthur Dapieve: nomínimo
dapieve@nominimo.ibest.com.br
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